CONTO: Pássaro Azul

Ela estava relendo a sua poesia favorita, já sabia cada palavra seguinte, cada verso. Sabia como iria acabar e isso a entristecia cada vez mais, pois, quando lia fazia analogia coma a vida. Por que não esquecer tudo? Ler como se fosse a primeira vez, como se fosse o primeiro toque e movimento. Ver aquilo com olhos de turistas, olhos de viajantes, olhos de leigos que descobrem as verdades da vida, a beleza de viver.
Para ela, a vida era como versos de um poema: começa confuso sem muitas explicações e sem contexto, assim como nossa infância. Depois fica mais complicado e se encontra algumas palavras mais rebuscadas – difíceis, sempre difíceis - assim como adolescência, depois você encontra alguns versos que já indicam o fim, o que não significa ter conclusão ou sentido, isso seria a vida adulta; e a última frase, sempre a mais confusa, sempre a que traz mais questionamentos e revoltas, em algumas vezes, do autor, nesse caso é a velhice. Quando se deparasse com o que foi feito durante toda a vida e, naquele momento, tivesse percebido que tudo foi uma merda, que não valeu de nada.
Apesar de fazer a analogia entre poesia e vida, nunca foi capaz de entender que sua própria vida era assim. Para ela, sua vida era muito bela... Não lembrava da infância, mas a infância sempre é uma fase boa, era o que todos diziam. A adolescência foi confusa, também não se lembrava, não lembrava dos sentimentos, porém... de todo mundo era confuso, não é mesmo? E estava ela na fase adulta. O que isso significava? Ela não sabia... mas sabia que todos diziam que deveria se tomar decisões importantes.
...
Ela lia e relia seu poema favorito em busca de uma virgula mal colocada, mal intencionada. Era capaz de recitar os versos de olhos fechados. Era capaz de dizê-los ao contrário, de encontrar sinônimos para cada palavra, era capaz de traduzi-lo para qualquer idioma possível mas não era capaz de mudar de poema. Assim como não era capaz de mudar o lugar que sempre sentava no trem ou de mudar a playlist do celular. Assim como não era capaz de olhar para o lado, levantar os olhos
Talvez se ela tivesse levantado os olhos teria visto um casal de velhinhos que se amavam. Se tivesse levantado os olhos teria visto o cara do outro lado completamente apaixonado por ela mas sem nenhuma expectativa de se levantar e ir dizer qualquer coisa a ela. Se tivesse levantado os olhos teria reparado que cada estação tinha suas características... algumas eram floridas e cheirosas, outras tinham folhas secas pelo chão mas nada que diminuísse a beleza, outras tinham um calor que esquentava o coração e outras chuvas que abençoava e levava tudo de ruim embora. Mas não, ela não levantava os olhos e não percebia a vida que se passava.
Seu poema favorito era sua distração. Ficava horas se dedicando a encontrar e entender as palavras lá expostas, porém, nunca em sentir. Contudo, o que dizer? Não a ensinaram a sentir, não a ensinaram a viver, a ensinaram a sobreviver. A estar lá quando alguém precisa mas nunca perguntar se alguém poderia ajudá-la.
Todavia, algo se tornou diferente naquela terça-feira, ou era quarta, ela não sabia. De repente, enquanto se encaminhava para a estação de todos os dias, um pássaro azul passou por ela. Foi rápido, mas o suficiente para encantá-la, o suficiente para que ocorresse algo em seu ser.
Ao chegar na estação, ainda surpreendida com o pássaro que lhe atravessou o caminho, retomou ao seu poema favorito e, antes mesmo de entender, sentiu. Foi como se tivesse o lendo pela primeira vez, mesmo sabendo cada verso. Dessa vez a realidade e o poema se faziam presente, se tornando um.
Ela sorriu. Enfim havia compreendido o poema que se fazia presente.
Olhou para os lados e reparou em um belo rapaz que a mirava, sorriu para ele que retribuiu com o mesmo afeto. Olhou para as janelas e viu, uma a uma, cada estação... Cada flor, folha, raio solar ou pingo de chuva que a vista alcançava. Começou a chorar, era lindo. Era tudo muito lindo.
Lembrou da própria analogia criada por si e percebeu que sua vida era uma confusão sem entendimento. Percebeu o quanto deixou de viver e já estava preste a sua velhice... bem, faltava vários anos, porém, já havia passado muitos anos da infância e não poderia mais ser considerada adolescente.
Uma esperança embalou seu coração e sentiu que ainda dava tempo para ir além, mais além que qualquer um, ou qualquer coisa. Se sentia feliz. Quase no fim de sua viagem, estabeleceu metas para bem viver, coisas que sempre quis fazer mas nunca se dedicara a isso. Decidiu descer uma estação antes, seria bom dar uma caminhada, respirar, ver as coisas e pessoas de perto.
Ao atravessar faixa de pedestre, uma luz muito forte e uma buzina em toda altura rompeu seus pensamentos e de súbito uma dor surreal. As coisas foram se tornando escuras demais, pesado demais. Num ultimo olhar viu, um pássaro azul que pousou sobre seu corpo frágil e depois levantou voo. Não viu mais nada.
Ao lado, um homem abre uma agenda ensanguentada do qual a última frase era: agora te entendo, Bukowski...




SMRIBEIRO

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