Crônica: M

Seu corpo tremia inteiramente. Tinha acabado de sair do consultório médico, estava na parada de ônibus e não tinha certeza se estava no lugar exato para pegar a condução de volta pra casa. Na dúvida, atravessou para o outro lado da rua, mas logo descobriu que estava no lugar certo e teve que retornar.
Voltou correndo, seu ônibus estava chegado. Pagou o cobrador, quase esqueceu do troco,
sentou nas ultimas cadeiras e se permitiu entender o que estava ocorrendo. Muitas informações vinham em sua mente, muitas pessoas iam e vinham, a imagem e as ultimas palavras do médico se misturava com vozes conhecidas.
“eu vou morrer”, pensou.
A ideia da morte era algo tranquilo para ela, pelo menos era o que pensava. Sabia que em determinado momento teria seu fim assim como todos no mundo, contudo, o normal era isso acontecer quando se está velho e já viveu tudo que tinha pra viver.
“eu tenho tantos sonhos, tantas vontades”.
Tinha acabado de entrar na universidade tanto almejada, tinha um ótimo convívio familiar e amava loucamente seu namorado. Sua vida era tranquila, era perfeita do jeito que estava. Já tinha planejado seu futuro, em um mês ficaria noiva, se casaria depois de seis meses (tempo suficiente para organizar sua festa de casamento).
Conciliaria as férias da faculdade e trabalho para viajarem a Paris e depois iam formando sua vida felizmente. Mas tudo acabou, ou estava para acabar. Acordou naquela manhã com a certeza de que tudo estava bem, agora terminava o dia com a tristeza de que o fim estava bem próximo.
Olhou pela janela do ônibus as nuvens no céu. Como gostava delas. Sempre que a olhava via formas de animais, pessoas, situações. Era divertido imaginar um mundo de imagens e ações em nuvens que se modificavam em menos de um minuto.
Observou as nuvens e se viu. Se viu pequena, abraçando sua mãe, depois se viu adolescente conhecendo seu namorado, olhos apaixonantes. “Bem, diziam que antes da morte a sua vida passa diante dos seus olhos.. a minha passa pelas nuvens”, pensou sorrindo. Sua vida estava passando no conjunto de nuvens ao decorrer do caminho para casa.
Viu as inúmeras brigas com seu namorado e todas as vezes que fizeram as pazes, viu todas as flores que ele levava, “lindas flores do campo”, ouviu todas as trilhas sonoras do decorrer de seis anos juntos, viu todos os sorrisos de piadas sem graças mas que a fazia feliz. Era tão feliz, o amava tanto, tanto.
Uma emoção invadiu seu coração. Ia perde-lo. De tudo que ocorreu, de todos que passaram pela sua vida, a única certeza era que o amava e que era amado por ele, desde o primeiro momento que o viu, desde a primeira piada idiota, desde o primeiro sorriso, do primeiro olhar.
Sim, amava sua família, amava seus amigos, mas ele fazia dançar seu coração, emanava o desejo de melhora, de ser feliz, de ajudar o próximo. Eram almas perdidas que tinham se encontrado e agora não ia ter continuidade, iriam se perder de novo.
“eu estou morrendo, eu não tenho tempo”. Sua viagem estava no fim, tanto na vida como no ônibus. Começou a chorar compulsivamente, não se controlava e na verdade não queria se controlar. Em poucos minutos teria que dizer a todos, teria que dizer a ele que não tinha mais um ano de vida.
Talvez ela estava preparada para a morte, mas não estava preparada para dizer adeus a única pessoa que a olhou verdadeiramente, que fez ela criar poesia, a cantar e amar. Antes de descer do ônibus, com muitas lágrimas nos olhos, escutou alguém cantando a ultima musica que escutou com seu amado:
só sei dançar com você, isso é o que o amor faz...



Comentários