Crônica: Sábado


A escritora sentou na sua mesa de trabalho, como todos os dias. Ligou o computador, como todos os dias. Abriu o arquivo de word, como todos os dias e como todos os dias passou horas olhando para tela do computador e sua mente pensando no jantar, mesmo mal tendo acabado de tomar o café da manhã. “A crise do escritor, só pode ser! Nem sei se isso existe, mas, se existir, eu estou tendo” repetia para si, todos os dias.
E todos os dias ela tentava mais uma vez escrever algo que preste, algo que fosse útil, tentou até escrever algo inútil e nada. Nada vinha. Nada acontecia. Já tinha tempo que ela estava assim, sem nada para escrever, nenhuma ideia para poesia, para música, para contos, para crônicas, para qualquer coisa que tirasse ela de sua realidade.
“escrever sempre foi minha fuga, sempre foi o meu transbordamento, sempre foi aquilo que jogava tudo para fora de mim e por que não agora? O que há de diferente? Eu não posso ter ficado sem problemas, sem angustias”.
E nesse ponto ela estava correta. Problemas e angustias eram algo que ela carregava consigo sem muito esforço, ela mesmo os provocava, “mas tem algo de diferente. O que tem de diferente?”
Levantou, foi até a cozinha, pegou mais uma xícara de café e no primeiro gole veio a epifania: “eu mudei”. Se em outros momentos ela aproveitaria para escrever, jogar tudo pra fora, dessa vez ela foi direta para a janela e mirou num ponto qualquer enquanto pensava:
“eu mudei. Claro! Não sou mais a mesma. Engraçado eu não ter pensando nisso antes. Mas eu nem vi! Desde quando viver comigo mesma é motivo de rotina? Quando foi que ser eu mesma se tornou tão chato ao ponto d’eu me acostumar com tudo sem questionar? Sem me reconhecer?”
Saiu da janela, foi até seu quarto e parou diante do espelho.
“eu mudei por dentro. Essa carcaça continua a mesma. O mesmo peso, o mesmo rosto, o cabelo um pouco maior, mas ainda o mesmo. Foi a isso que eu me acostumei”.
Não, ela não tinha se acostumado a seu corpo, a essa visão física de si, ela se acostumou a achar que somente aquilo lhe definia, que somente essa matéria era capaz de dizer e determinar quem era ela.
“engraçado como a gente se limita a um corpo. A imagem de nós não vai além do nariz, fica presa desde o último fio de cabelo até a unha do pé. Eu me acostumei a não me olhar, me acostumei a aceitar qualquer fofoca que eu criei de mim mesma. Me acostumei, deixei eu me tornar minha própria rotina mesmo todos os dias reclamando disso.
“e agora? Como deixar de se acostumar? Amanhã estarei pensando dessa mesma forma? Amanhã estarei eu mais diferente de hoje? Ou tanto faz?”
Não sabia responder. Algo que ela ainda não tinha percebido, e talvez percebesse em alguns dias, era o simples fato dela estar falando mais consigo mesma do que em qualquer outro momento da sua vida. Ela já não estava tão disposta a jogar tudo pra fora, já não estava disposta a dar a cara a tapa. Ela preferia o mundo dela, era mais natural lidar com os seus próprios problemas.
“Talvez eu tenha que mudar de profissão”, pensava, “eu poderia seguir a carreira que eu quisesse agora. Qualquer profissão que não cobrasse de mim tanta criatividade sobre o mundo. Creio que dele nada sei mais.”
Mas sabia, sabia o suficiente para não querer frequentá-lo.


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